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Onde a terra treme: o Clássico da Villa Crespo


Iagotta

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Onde a terra treme: o Clássico da Villa Crespo

Por Douglas Ceconello

Esta é uma história sobre como módicos oito quilômetros podem gerar uma rivalidade impossível de ser medida. Na última terça-feira, diante de 20 mil torcedores, o Chacarita Juniors, um dos clubes mais tradicionais do futebol argentino, sacramentou seu retorno à segunda divisão nacional, após dois anos amargando uma peregrinação pelo terceiro escalão. Mais do que isso, retorna após grande trajetória em um campeonato no qual venceu por duas vezes seu tradicional rival, o Atlanta, que permanece na Terceirona após uma temporada lamentável. Mesmo separados de vizinhança, inclusive em cidades diferentes, os times disputam o clássico da Villa Crespo, um dos mais representativos, acirrados e tensos do futebol castelhano – estes quilômetros de distância, aliás, são um dos principais componentes que exacerbaram a rivalidade ao longo dos tempos. Porque um dia, tempos atrás, ambos eram vizinhos de quadra, janela com janela, até que sucedeu um evento terrível, cravejado pelos pontiagudos pregos da mais requintada crueldade, que acabou esfolando para sempre a alma do Chacarita e arremessando o clássico para a eternidade.

Como sabemos, cada rivalidade futebolística tem suas nuances e idiossincrasias. É claro que sempre há o componente GEOGRÁFICO, que acirra a disputa pela supremacia sobre determinado território – o país, o estado, a cidade, o bairro, a rua, o cômodo da casa, que seja. Aquela coisa ancestral de demarcação de território, que os cachorros também praticam todos os dias erguendo a perna pelos postes da vida. No entanto, o momento que deflagra o sentimento de antagonismo diverge dependendo das partes envolvidas. Há clubes que surgiram e elegeram seus rivais após cisões com outros por diferenças ideológicas, administrativas, poéticas ou filosóficas. Há, também, quem tenha nascido pela rejeição de outras agremiações, enquanto certas rivalidades foram gestadas após episódios ou jogos marcantes. O causo a ser narrado, no entanto, supera qualquer destas supracitadas circunstâncias - é uma história que envolve drama, nostalgia, desventura e grossas pinceladas de infâmia, que até hoje serve de combustível para as gargantas de bohemios e funebreros sempre que suas esquadras estão frente a frente.

O que sucedeu, naquela época em que se via os jogos em SÉPIA, foi o seguinte. Nascido no bairro que dá nome ao clube, o Chacarita mandava seus jogos no bairro vizinho, a Villa Crespo, mas com o tempo sentiu a necessidade de construir um estádio maior. Então, em 1933, na frente de sua antiga cancha, do outro lado da Rua Humboldt, levantou sua nova casa, portentosa para a época, erguida por jogadores, dirigentes e torcedores, como ocorria com frequência naqueles tempos de candura. Acontece que pouquíssimos metros ao lado, na mesma rua, ficava o estádio do Atlanta, então um clube de maior pujança financeira e desportiva. O estádio dos funebreros (apelido do CHACA que faz referência ao cemitério de Chacarita, o maior de Buenos Aires) era bastante maior e mais confortável que a casa do rival Atlanta. O Chacarita passou a viver tempos áureos, desfrutando de sua reluzente moradia e protagonizando grandes MATCHES na elite do futebol castelhano. Só havia um porém, que logo mostrou carregar em seu ÂMAGO a origem da desgraça: o estádio estava situado em um terreno alugado.

Para nós pode parecer um pouco incompreensível, mas o futebol de bairro é muito forte em Buenos Aires. Os clubes portenhos movimentam as vizinhanças, suas paixões e sua vida social, mesmo em canchas muitas vezes acanhadas, bem aquém da grandiosidade dos considerados grandes do futebol nacional. Não raras vezes colocam públicos maiores que jogos da primeira divisão brasileira. E, mais importante, a noção de PERTENCIMENTO a um bairro é algo muito sério para os clubes de lá, já que cada vizinhança possui raízes e mitologia próprias (basta vermos a recente epopeia do San Lorenzo para voltar a Boedo). Certa vez, perguntei a um taxista de Buenos Aires para que clube torcia, ele respondeu “Atlanta” e se surpreendeu, talvez até duvidou, que eu sabia da existência do time. Não importa em que divisão ou situação financeira esteja – se um portenho torce para o COLEGIALES, torcerá para sempre. Este taxista inclusive tinha uma curiosa explicação sobre o Atlanta jogar a terceira divisão: “Não querem subir porque se gasta muito dinheiro para fazer time. É melhor ficar lá”. Tanto Atlanta como Chacarita sempre foram clubes tipicamente portenhos, daqueles cujos áureos tempos hoje são lembrados com nostalgia quase lacrimejante pelos senhores sentados em bodegones entre um café e um whisky, sem se importar com questões menores e amargamente tangíveis, como a divisão que o time frequenta atualmente ou a quase sempre periclitante situação financeira.

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Atlanta e Chacarita, antigamente vizinhos de janela.

Naquela época do ACONTECIDO, início dos anos 1940, apesar da proximidade, a rivalidade entre os clubes poucas vezes entrava em campo, já que costumavam frequentar diferentes divisões do futebol argentino. A rivalidade, no entanto, logo recebeu uma jorrada de gasolina que jamais cansou de queimar. Sabedores que o Chacarita estava com o aluguel do terreno do seu estádio atrasado, coisa de seis meses, algo assim, o Atlanta, por meio de famílias ricas vinculadas ao clube, fez uma proposta ao proprietário da área e, depois dos trâmites legais, COMPROU o estádio do adversário, já que o Chacarita não tinha condições de cobrir a proposta. A história é contada por Alejandro Fabbri, no livro El nacimiento de una pasión - Historia de los clubes de fútbol.

O Funebrero chegou a se negar a abandonar o lugar, mas após espernear acabou deixando sua casa. Para piorar, em seu último jogo no bairro, em novembro de 1944, levou um sacode de 7 a 2 do próprio Atlanta, na casa dos bohemios, ali do lado, no chamado jogo da "expulsión". "Eran los vecinos nuestros, los mandamos a San Martín...", diz um dos cantos da torcida do Atlanta, que até hoje faz troça e ao mesmo tempo parece sentir falta de olhar para o lado e ver todos os dias o rival de sempre. E, como tristeza não tem fim, pouco depois toda a gente funebrera ainda precisou assistir, com os olhos que a terra do cemitério da Chacarita há de comer, ao Atlanta demolir sua antiga casa para expandir seu próprio estádio por cima. Em 1960, era inaugurado o Estadio Don León Kolbowsky, nova casa bohemia.

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A nova casa do Atlanta, erguida sobre o estádio do Chacarita. Dizem que às vezes a terra treme.

Como nos anos 40 já era impossível encontrar nas redondezas uma área adequada para erguer um novo estádio, o CHACA, despejado e traumatizado pela ditadura do IPTU, foi obrigado a mudar de cidade, passando a jogar em San Martín, na Grande Buenos Aires, onde até hoje manda suas partidas. São oito quilômetros em linha reta, 11 por meio de AUTO, mas uma distância daquelas que jamais serão totalmente percorridas, não importa o quanto se ande. Aliás, este problema de não conseguir construir estádio em seus domínios em Buenos Aires não é exclusividade do Chacarita; pelo mesmo motivo, o Almagro, por exemplo, também joga fora da cidade. Mas a circunstância do perrengue na Villa Crespo, esta sim, é única. Porque é impossível pensar em uma AFRONTA maior e mais sádica do que ser expulso de seu próprio bairro, de sua própria cidade, para ver seu rival mais íntimo SOTERRAR sua casa e passar a morar em cima - cada vez que o Chacarita visita o rival na Villa Crespo está jogando sobre o que um dia foi seu próprio estádio.

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Ainda não inventaram sistema de medida capaz de compreender esta distância.

O clube fez questão de manter seu vínculo com a vizinhança, tanto que até hoje sua sede social está localizada na Chacarita. Naturalmente, sendo o único clube da zona, o Atlanta angariou muito mais adeptos nos anos seguintes, mas parte da população dos bairros de Chacarita e Villa Crespo continuou fiel ao Funebrero e costuma realizar a pequena viagem para ver a equipe jogar em San Martín, a noroeste da capital federal. Devido ao macabro evento da década de 40, a rivalidade cresceu de forma inversamente proporcional à proximidade entre os clubes. Basta assistirmos, por exemplo, ao vídeo abaixo, que mostra a incontida comemoração na sede do Atlanta quando o Chacarita foi rebaixado de forma MEDONHA para a Terceira, em 2012, perdendo um pênalti nos acréscimos do segundo tempo diante do Nueva Chicago, em mais um daqueles desfechos INFARTANTES que a terceira divisão argentina costuma proporcionar.

Até hoje, quando ocorre o Clássico da Villa Crespo, sendo ou não jogado na Villa Crespo, a mobilização policial é forte, porque a tensão e a animosidade são ingredientes constantes – no percurso que construiu a rivalidade, restaram no caminho encontros épicos que ignoraram divisões, mas sobretudo a relação conflitante de vizinhos que se despediram de forma dramática e uma casa construída por cima da outra, que de alguma forma ainda está lá, como apregoam as pichações dos funebreros nas cercanias da Rua Humboldt. Desde a decisiva desavença imobiliária, este antagonismo passou a latejar cada vez mais forte, mesmo quando os rivais passam largas épocas sem se enfrentar por frequentarem divisões diferentes. Não é Avellaneda, Istambul, Montevidéu ou Porto Alegre. É apenas a Villa Crespo, com um estádio real em cima de um outro estádio cuja presença ainda se sente, soterrado e ao mesmo tempo ETÉREO. E algo desta natureza é impossível de medir.
 

@Meia Encarnada

Postado

Essa história eu conhecia já. Mas legal lembrar dela de novo. É sensacional mesmo. 

Postado

Que história foda!

 

  • Diretor Geral
Postado

CARAAAAAALHOW!
Puta que me pariu, parceiro... não consigo nem imaginar isso transportando pra realidade de Campinas, hahahaha! Não dá, incabível.

Valeu @Iagotta, o texto é mt gostoso de se ler, e a história mais fascinante ainda.

 

 

p.s: deu até uma vontadezinha de encaixar aquele save de FM, com um dos dois hahah.

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