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O símbolo do luto e da coragem presente em todas as traves na Copa de 1978


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O símbolo do luto e da coragem presente em todas as traves na Copa de 1978

Por Leandro Stein

Se você reparar bem nos gols decisivos de Mario Kempes, elas estão lá. Assim como na bola matreira de Rob Rensenbrink, que quase mudou a história da final. No chutaço de Nelinho, nas falhas de Quiroga e em tantos outros momentos marcantes da Copa do Mundo de 1978. Bem na base das traves daquele Mundial, existem tarjas pretas pintadas. Um detalhe atípico, mas presente nos diferentes estádios utilizados durante a competição. A princípio, pode parecer um mero capricho. Longe disso. Seu significado é profundo, e veio à tona nesta quarta, quase 40 anos depois da realização do torneio. Um símbolo do luto e da dor em meio à ditadura militar na Argentina.

David Forrest, como de praxe, é um escocês apaixonado por futebol. Quando tinha 10 anos, sonhou com o sucesso do timaço de seu país nos gramados argentinos, algo que não aconteceu. O elenco recheado de grandes jogadores caiu ainda na primeira fase, por mais que o gol fabuloso de Archie Gemmill contra a Holanda tenha tomado o imaginário popular de seus compatriotas. Aquelas lembranças vinham com frequência à mente de David. Especialmente, as faixas negras pintadas nas traves, que magneticamente atraíam seus olhos a cada gol. As pesquisas em livros e documentários nunca lhe entregaram a resposta do porquê surgiram ali.

Quase 40 anos depois, o escocês teve a oportunidade de viajar a Buenos Aires. Acompanhou a esposa, doutoranda, em sua pesquisa sobre a memória social da violência cometida pela Junta Militar, que tomou o poder na Argentina entre 1976 e 1983. Juntos, visitaram os centros clandestinos de tortura, que disseminaram o medo e provocaram o “desaparecimento” de milhares de argentinos. E, nesta imersão na história local, David coincidentemente descobriu explicação para a dúvida que o perseguiu durante quatro décadas, sobre as tais faixas na traves durante o Mundial. Uma história fascinante, que contou em excelente crônica publicada pelo jornal The Guardian – sobre a qual se baseia este texto.

Enquanto comia em um restaurante famoso de Buenos Aires, David examinava um livro sobre a Copa do Mundo de 1978. Surpreendentemente, foi interpelado pelo garçom, que quebrou os protocolos quando perguntou o que o cliente estava lendo. O escocês mostrou a ele uma foto do goleiro Jean-Paul Bertrand, sob as traves no jogo entre a França e a Argentina, e o atendente perguntou se o turista era francês. No entanto, a explicação do visitante sobre o seu interesse nas tarjas das traves causou o espanto do garçom, erguendo as sobrancelhas. Com os olhos brilhando, indicou que, se estava interessado naquela Copa, deveria visitar o Monumental de Núñez.

David seguiu o conselho. Uma semana depois, assistiu ao Superclássico no estádio. Já no dia seguinte, fez uma visita guiada pelo gigante de concreto. Depois de pisar na grama, contra qualquer permissão, o escocês foi repreendido pelo responsável por cuidar do campo, que o pediu para sair. Então, David aproveitou a ocasião para questionar o senhor sobre as tais marcas negras. O funcionário levou o turista para uma salinha no Monumental, cheia de fotografias em preto e branco, relembrando alguns dos desaparecidos durante a ditadura. Foi quando um retrato em particular chamou sua atenção.

O argentino explicou que aqueles homens posados na imagem cuidaram dos gramados durante a Copa do Mundo de 1978, trabalhando junto ao comitê organizador. “Se você quer saber por que pintaram estas faixas pretas, terá que perguntar a algum deles”, disse. Um rosto era particularmente familiar a David. Os cabelos podiam ser mais longos no retrato, mas os olhos e o sorriso eram idênticos aos que vira dias antes. Veio o estalo: o garçom que o interpelou na semana anterior estava naquela fotografia! O idoso era justamente um dos funcionários do Monumental durante o Mundial. “Ezequiel Valentini”. Ele teria a resposta sobre as traves.

No momento em que David entrou no restaurante novamente e o garçom o viu, sorriu com o canto da boca, já sabendo a razão do retorno. Ao final do horário de serviço durante a tarde, os dois se sentaram em uma mesa. Ezequiel começou a sanar o mistério que ocupou não só a mente do escocês, como milhares de outras pessoas ao redor do mundo que viram as imagens da Copa do Mundo de 1978.

“Você precisa entender que nós tínhamos um grande problema”, falou Ezequiel, em voz baixa. Ele explicou que, enquanto a equipe que cuidava do gramado tinha um trabalho a fazer, eles temiam a ideia de que a ditadura em explorasse politicamente a Copa do Mundo, assim como permaneciam horrorizados com o desaparecimento de milhares de pessoas. “Em meados de 1978, todos sabiam dos desaparecimentos. Os funcionários, os jogadores, todos tinham o mesmo problema. Como nós podemos fazer o nosso melhor sabendo que os generais irão se beneficiar?”, replicou. Como rememora o próprio David, diz-se que o técnico César Luis Menotti, na preleção antes da final, urgiu aos jogadores que vencessem não pela ditadura, mas sim pelos metalúrgicos, padeiros, açougueiros, taxistas e outros assalariados que lotavam o Monumental. Cumpriram o pedido, batendo a Holanda na prorrogação, por 3 a 1.

Segundo Ezequiel, a estrutura das traves já tinha proporcionado uma dor de cabeça à organização da Copa. A Fifa pediu que o método para suspender as redes fosse igual nos seis estádios que receberiam as partidas e que não existissem suportes ou ferragens atrás das metas. “Nós sabíamos que as redes ficariam visíveis para o mundo inteiro. Era importante que o método usado representasse as pessoas da Argentina”, afirmou Ezequiel. Como o padrão na Argentina tinha suportes atrás, a escolha do modelo ideal foi um dilema. E mesmo a uniformidade pedida pelos dirigentes internacionais não foi totalmente atendida. “Nós não somos um povo uniforme”.

E em meio a toda essa discussão com a Fifa, se inseriu a questão das faixas negras. Quando David perguntou a Ezequiel qual era a razão da pintura, o veterano apontou para o seu braço. Foi quando o escocês percebeu finalmente o contexto: eram braçadeiras negras, uma forma encontrada de relembrar os desaparecidos.

“Todos conheceram alguém que conhecia alguém que desapareceu. A equipe de organização inteira queria protestar. Naquele momento, as Mães da Praça de Maio estavam marchando e sabíamos que o mundo inteiro assistiria ao torneio. Nós discutimos a possibilidade de cortar uma mensagem na grama ou pintar algo nas placar de publicidade. Algo que as câmeras pudessem captar”, rememora Ezequiel. Ideias descartadas, diante das consequências em protestar publicamente contra a ditadura. Quem o fizesse também poderia se tornar um novo desaparecido. “Eu não estava com medo por mim. O terror funcionou de tal maneira que você temia por sua família e por seus amigos. Cada jogador de cada seleção na Copa deveria ter usado uma braçadeira negra para relembrar os mortos”.

Sem ter como protestar publicamente, um colega de Ezequiel deu a ideia de representar o luto vivido no país. As traves passariam a usar a braçadeira. Ainda assim, precisaram apresentar a ideia aos generais. “Eles perguntaram o que as faixas negras queriam dizer. Nós contamos que era uma tradição”, riu. Com a ânsia dos militares em ‘respeitar as tradições’ durante o Mundial, foram facilmente enganados. “Eles não tinham qualquer ideia sobre futebol”.

A possibilidade de serem descobertos pela ditadura não preocupou Ezequiel e seus companheiros. “Milhares estavam desaparecidos, presumidamente mortos. Mesmo hoje em dia não é possível dizer quem e quantos foram mortos pela Junta. Era justo que fossem relembrados publicamente”, analisa. “A Junta colocou seus centros clandestinos de tortura diante dos olhos de todos. Nós lembramos nossos mortos diante dos olhos do mundo inteiro. Como estes centros, nosso ato de lembrança estava escondido, mas era visto por todos”. Olhando apenas para as traves, hoje em dia, a faixa negra parece apenas um detalhe atípico. Mas, naquele momento histórico, certamente milhares de argentinos captaram a mensagem. E se sentiram representados por aquele sinal de luto e dor, mas ao mesmo tempo de força e coragem.

http://trivela.uol.com.br/o-simbolo-do-luto-e-da-coragem-presente-em-todas-as-traves-na-copa-de-1978/

Que história, que homens.

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História fantástica, só aumenta meu desejo de visitar Buenos Aires. Aliás, nunca tinha lido nada sobre esse lado dessa ditadura na Argentina acontecendo durante a Copa de 78, buscarei ler também.

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Em ‎06‎/‎07‎/‎2017 at 13:45, Yan Perisse disse:

História fantástica, só aumenta meu desejo de visitar Buenos Aires. Aliás, nunca tinha lido nada sobre esse lado dessa ditadura na Argentina acontecendo durante a Copa de 78, buscarei ler também.


Aqui um trabalho lindo do Lúcio de Castro (ex-ESPN) sobre o futebol nos tempos das ditaduras sul-americanas. Aqui ele entrevista até mulheres da Plaza de Mayo que se reúnem todas as quintas na praça para protestar pelos maridos e filhos sumidos durante a ditadura argentina.

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13 minutos atrás, P.S.Y. disse:

Aqui um trabalho lindo do Lúcio de Castro (ex-ESPN) sobre o futebol nos tempos das ditaduras sul-americanas. Aqui ele entrevista até mulheres da Plaza de Mayo que se reúnem todas as quintas na praça para protestar pelos maridos e filhos sumidos durante a ditadura argentina.

Assim você me mata, PSY. Vou ver com certeza, valeuzão.

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