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Porque é que já ninguém contrata técnicos brasileiros?


Gourcuff

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Porque é que já ninguém contrata técnicos brasileiros?

Soberba. Empirismo. Salários obscenos. Debilidades culturais. Comodismo. Os factores são complexos e estão interligados.

O carioca Otto Glória chegou a Portugal em meados dos anos 1950, treinou os quatro grandes da época – Benfica, Sporting, FC Porto e Belenenses – e a seguir levou a selecção nacional à primeira e também melhor participação de sempre em mundiais de futebol, o terceiro lugar de 1966, em Inglaterra. Mas acima de tudo deixou um legado de inovação no país, a começar pela introdução do profissionalismo, já então um dado adquirido no Brasil, e a acabar em metodologias de treino diferentes e vanguardistas.

Depois dele, entre um batalhão de treinadores brasileiros, Dorival Yustrich e Carlos Alberto Silva, campeões nacionais pelo FC Porto, Marinho Peres ou Paulo Autuori, com excelentes trabalhos em clubes de classe média e oportunidades no Sporting e no Benfica, foram bem sucedidos em Portugal. Até chegar Luiz Felipe Scolari, em 2002. Líder nato, especialista em criar grupos e em motivar tanto os jogadores como os próprios adeptos, levou a selecção nacional portuguesa a um patamar tão alto como Glória – final de um Europeu, em 2004, e meia-final de um Mundial, em 2006. Porém, ao contrário do compatriota, não deixou qualquer legado técnico, táctico ou metodológico quando, em 2008, saiu para trabalhar – e falhar – no Chelsea.

O mesmo Felipão rompeu contrato nos últimos dias com o Grémio de Porto Alegre, ainda com a cicatriz dos 7-1 impostos pela selecção alemã à selecção brasileira nas meias-finais do último mundial marcada no currículo. A partir dessa tarde em Belo Horizonte – 8 de Julho de 2014 – o Brasil inteiro apercebeu-se, com estrondo e uma dor imensa no coração, daquilo que observadores internacionais e parte da imprensa local já anunciavam há anos: o futebol do “país do futebol” estagnou e a fonte de onde brotam as ideias do jogo, os cérebros dos treinadores, secou.

Porquê?

Em primeiro lugar porque no futebol brasileiro os treinadores não têm tempo para pensar. Salvo raras excepções, não lhes são permitidos trabalhos consistentes e duradouros. O despedimento banalizou-se. No dia seguinte a Scolari se demitir do Grémio, caiu o técnico do Fluminense. O São Paulo vai apresentar novo comandante nas próximas horas. Enquanto lê este texto pode ser despedido mais algum treinador, a qualquer momento. Tudo com apenas três jornadas de Brasileirão. Em 2014 houve 24 “chicotadas” numa prova com 20 equipas participantes.

Celso Roth é um caso paradigmático: já treinou três vezes o Internacional de Porto Alegre e quatro o arqui-rival Grémio, em cada uma delas contabilizando o tempo de trabalho em meses, jamais em anos.

“Essa é a prova de que não são apenas os treinadores o problema”, diz o próprio Roth ao Rede Angola. “A falta de qualidade dos dirigentes brasileiros, imediatistas, sem preparação, decidindo com base na emoção, no fim das contas meros ‘torcedores’ do clube, também é culpada”, denuncia. “E agora, quando se diz que os treinadores brasileiros são maus, não se sublinha que estamos a passar por uma fraca colheita de jogadores, ou seja, a questão é séria, é profunda, é de dirigentes, é de jogadores e é de treinadores, é fácil apontar o dedo apenas aos técnicos”.

O calendário também é prejudicial. O Brasil, além de viver com o passo trocado em relação aos principais centros do futebol, usando o ano civil como época desportiva, tem pré-temporadas mínimas e não respeita as datas FIFA para conseguir conciliar os obsoletos campeonatos estaduais e o Brasileirão nos 12 meses do ano. Como tal, joga-se quase tanto como se treina, os atletas lesionam-se com frequência desmedida e o desgaste dos treinadores perante os adeptos – e os dirigentes – aumenta.

O jovem treinador brasileiro Thiago Brieger, que realizou um estágio com o português André Villas Boas no Zenit São Petersburgo (campeão russo), fala mesmo em “problema cultural” ao Rede Angola. “Os brasileiros gostam de ganhar, não gostam de competir, para se criar uma equipa bem treinada, consistente e com uma filosofia bem definida é necessário trabalho duro, no Brasil isso não existe, não há tempo…”

Com larga experiência no Brasil e na Europa, André Cruz, herói de dois títulos portugueses com o Sporting, em 2000 e 2002, aponta outros factores para a desaceleração do interesse no produto “treinador brasileiro” ao RA: “Só agora se começa a falar do problema dos salários dos grandes técnicos, os treinadores de topo no Brasil ganham ordenados altíssimos, numa altura em que na Europa se passou a racionalizar custos”.

“Além disso”, continua o antigo defesa-central da selecção brasileira, “Portugal, por exemplo, formou óptimos técnicos, campeões não só na Liga portuguesa como também no estrangeiro [Jorge Jesus, em Portugal, José Mourinho, em Inglaterra, Vítor Pereira, na Grécia, Paulo Sousa, na Suíça, e Villas-Boas, na Rússia, foram campeões nacionais em 2015], por isso os dirigentes não vêem motivo para apostar em estrangeiros caros”.

Desactualizados

Segundo estes primeiros diagnósticos, os treinadores brasileiros são, portanto, caros. E prejudicados pelo contacto com dirigentes amadores, em primeiro lugar, por uma conjuntura negativa na produção de craques, em segundo, por um calendário que não deixa respirar, quanto mais pensar, em terceiro, e por questões culturais profundas, em quarto.

Mas estão ou não desactualizados? André Cruz admite que sim mas regista “uma nova geração composta por gente como o Doriva [campeão estadual em São Paulo pelo Ituano em 2014 e no Rio de Janeiro pelo Vasco da Gama em 2015, com passagem pelo FC Porto e mais quatro países europeus enquanto jogador] e outros que está se adaptando ao futebol moderno”.

Por oposição, presume-se, às estrelas cadentes Felipão, Vanderlei Luxemburgo ou Muricy Ramalho, os três grandes treinadores do Brasil das últimas décadas.

Luxemburgo, pentacampeão brasileiro no passado e hoje em dificuldades para manter o cargo no Flamengo, contraria a tese do atraso dos treinadores locais face aos europeus. “Nem pensar, estamos adiantados, aqui é muito mais difícil treinar do que na Europa”, disse em entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo.

Mário Zagallo, campeão do mundo como jogador em 1958 e 1962, como treinador em 1970 e como adjunto em 1994, mas hoje retirado, faz coro. “Os europeus têm tudo prontinho, querem um jogador têm, aqui não, aqui não há dinheiro, é mais difícil trabalhar, encontrar soluções”.

Um episódio com Muricy Ramalho, tetracampeão brasileiro, é elucidativo de uma certa soberba à brasileira – de quem pensa que o pentacampeão mundial Brasil e o seu umbigo são o centro do universo. Na final do Mundial de Clubes de 2011, quando orientava o Santos, Muricy enfrentou o então imbatível Barcelona de Pep Guardiola. Em conferência de imprensa antes do jogo não considerou o homólogo catalão dos melhores técnicos do mundo: “Para ser dos melhores do mundo, tinha de treinar no Brasil”. No dia seguinte, o Barça goleou por 4-0. E podiam ter sido muitos mais, relatou a imprensa especializada na época.

“Nesse jogo Muricy achou que bastava jogar com um central extra, sem nunca ter treinado esse sistema, para ganhar, para essa geração é tudo na base do empirismo, desprezam a ciência”, lembra Bruno Bonsanti , jornalista do site Trivela ao RA. “Há uma vaidade nos técnicos que começaram a carreira na época em que o futebol brasileiro era de facto melhor que qualquer outro e um preconceito contra o futebol científico e os esquemas tácticos rígidos do futebol europeu”, continua.

Leonardo Bertozzi, jornalista da ESPN Brasil, vai mais longe. “Há uma certa soberba, sem dúvida, há aquela ideia de que ninguém pode ensinar futebol ao país pentacampeão mundial”, disse ao RA. “Depois há um comodismo que resulta dos altos salários pagos por aqui, ninguém acha que precisa de sair e, por isso, acaba por ir, na melhor das hipóteses, para mercados emergentes como a China ou os países árabes”.

Ou Angola, onde os técnicos brasileiros ainda vão encontrando emprego. Neste momento são dois, Alexandre Grasseli no Petro de Luanda e Roberto do Carmo, mais conhecido por Robertinho, no Atlético Sport Aviação (ASA). Curiosamente, ambos estão a passar por maus momentos: Grasseli está em 12.º com o Petro e Robertinho em 14.º com o ASA e não é seguro que os dois consigam manter o cargo até final da temporada. Diga-se que é preciso recuar a 2007 para encontrar um técnico brasileiro campeão angolano, foi o ex-central do Benfica Carlos Mozer, vencedor do Girabola em 2007 com o Interclube.

“Já arriscar trabalhar em equipas médias da Europa”, prossegue Bertozzi, “como fazem os técnicos de outros países sul-americanos, não está nos planos dos brasileiros”.

A Argentina de Diego Simeone, Tata Martino, Marcelo Bielsa, Mauricio Pochettino, o Chile de Manuel Pellegrini ou o Uruguai de Gustavo Poyet são exemplos da tese do jornalista. Entre os brasileiros que se aventuraram no Velho Continente, além de Scolari, que falhou no Chelsea em 2008-09, há apenas o caso de Vanderlei Luxemburgo, que foi despedido do Real Madrid em 2005-06.

“Felipão levou para Inglaterra a ideia de que a melhor forma de ganhar a Premier League era formando ‘uma família’, ora o futebol europeu é um pouco mais profissional do que isso, o fracasso dele, como o de Luxemburgo, podem mesmo ter assustado o mercado europeu”, diz Bruno Bonsanti.  “De vez em quando os técnicos também levantam a questão da língua, já que a maioria não sabe inglês, mas essa questão funciona quase como desculpa para se fecharem para o mundo”, conclui.

Os custos de se fechar para o mundo

E os custos de se fechar para o mundo são devastadores, conta-nos a história. Antes da tragédia na final da Taça dos Campeões Europeus de Heysel Park, entre Liverpool e Juventus, há exactos 30 anos, a Inglaterra, com sete vitórias nas oito edições anteriores, dominava a competição como nunca antes nenhum outro país. Após o afastamento das provas europeias por cinco épocas na sequência dos incidentes de Bruxelas e a consequente perda de contacto com outras culturas futebolísticas, os ingleses precisaram de 15 anos para acompanhar o ritmo de italianos, espanhóis ou alemães e voltar a vencer uma Champions.

Vanderlei Luxemburgo já treinou 31 clubes no Brasil, alguns deles mais de uma vez. Muricy Ramalho leva 22 anos sem nunca ter passado a fronteira, se descontarmos as experiências esporádicas no México e na China, uma espécie de segundo e terceiro mercados do futebol.

O futebol brasileiro consome-se a si mesmo – no máximo, um treinador carioca arrisca trabalhar num clube paulista ou um técnico mineiro aventura-se no campeonato gaúcho, por exemplo, como se o enorme país fosse mesmo um continente. Com isso, perdem-se os contactos com o mundo exterior, a vantagem do intercâmbio cultural, o comboio da modernidade.

Thiago Brieger usa a experiência na equipa técnica de Villas-Boas para defender que, “em matéria de planeamento, os europeus estão muito à frente”. “O envolvimento todo ajuda, Villas-Boas, como José Mourinho, seguem os ensinamentos de um pesquisador, o professor Vítor Frade, criador da periodização táctica, isso já é um grande diferencial”.

No início deste ano, o Corinthians apareceu com um 4x1x4x1 pressionante e organizado, à imagem das principais formações europeias que lhe garantiu longa invencibilidade e encantou a crítica. O treinador Tite aproveitara o ano sabático anterior para se reunir na Europa com Carlo Ancelotti, Jürgen Klopp e outros, com os quais partilhou experiências, ideias, filosofias, métodos. “Além disso, li muito, foi como uma reactualização”, contou. Os resultados provam que fez bem.

Talvez por isso, o São Paulo, ao decidir contratar um técnico para substituir o veterano Muricy Ramalho, tenha pensado nos portugueses André Villas-Boas e José Peseiro, nos argentinos Alejandro Sabella e Jorge Sampaoli, para acabar por se decidir pelo colombiano Juan Carlos Osorio. Revela o site do Globoesporte que os dirigentes são-paulinos não acreditam que algum treinador local trouxesse inovações na metodologia de treino, diferenças na gestão do grupo ou uma melhoria na relação entre os profissionais e a academia do clube.

Como um dia, a revolução que Otto Glória trouxe ao futebol português, marcando-o para sempre. Só que isso foi em meados dos anos 1950, quando o Brasil ainda não conquistara nenhum título mundial e, por isso, procurava, com admirável inquietação, caminhos para o sucesso. Cinco mundiais conquistados depois, essa inquietação perdeu-se e foi substituída por aquela soberba que normalmente anuncia o fim de um império.

NOTA: Já depois do texto escrito, Vanderlei Luxemburgo acabou despedido do Flamengo, após dez meses de trabalho e três jornadas do Brasileirão de 2015

http://www.redeangola.info/especiais/porque-e-que-ja-ninguem-contrata-tecnicos-brasileiros/

Postado

Excelente texto!

  • Vice-Presidente
Postado

Nenhuma novidade para nós.

Postado

Se nem os brasileiros estão querendo contratar treinadores brasileiros mais, imagina na Europa.

Postado

Com exceção do Tite, o restante é triste. Futebol brasileiro na minha opinião morreu naquele 7x1, na verdade já estava morto, mas ali fecharam o caixão.

Tem que mudar tudo. TUDO.

Ótimo texto.

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